António Guterres na ONU
– Para pior já basta assim

António Guterres, ex-primeiro-ministro de Portugal e Alto Comissário da ONU para os refugiados, é o próximo Secretário-Geral das Nações Unidas. Embora não seja um político polémico, os seus elogios ao regime angolano geraram polémica. Só na recta final é que Angola oficializou o seu apoio.

O Folha 8 solicitou, neste contexto, a algumas proeminentes figuras da nossa sociedade, que respondessem às seguintes questões:

1 – Como avalia os rasgados elogios que António Guterres fez ao regime angolano de José Eduardo dos Santos para obter o seu apoio na escolha para Secretário-Geral da ONU;

2 – Acredita que, como Secretário-Geral da ONU, António Guterres poderá ajudar à implementação de um Estado de Direito em Angola;

3 – Como antevê o papel da ONU no acompanhamento das eleições em Angola, previstas para 2017.

Raul Tati

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1. Na política e na diplomacia é costume entre os actores estatais ou não estatais presentearem-se reciprocamente com palavras, gestos ou acções para, em troca, conseguirem apoios. É aquilo que em latim se denomina por “captatio benevolentiae”, isto é, conseguir a boa vontade do interlocutor. Os políticos e os diplomatas devem aprender a fingir e adular. Neste tipo de actos, nem sempre há lugar para os limites da ética e da decência conquanto os fins justifiquem todos os meios. Não considero o Eng. António Guterres mais um daqueles casos de políticos portugueses que se tornaram subservientes ao regime de Luanda. Embora não tenha assumido posições claras contra a ditadura em Angola, sobretudo, no contexto da violação sistemática dos direitos humanos e pela repressão brutal exercida continuamente contra os cidadãos angolanos, dou-lhe o benefício da dúvida e relevo os seus elogios ao regime de José Eduardo dos Santos porque, sendo evidente o peso de Angola na diplomacia africana, particularmente neste ano que ocupa um assento não permanente no Conselho de Segurança, enquanto candidato ao cadeirão máximo da Organização, é compreensível que na sua campanha por apoios diplomáticos de deixasse empolar em galanteios ao regime. Portanto, do ponto de vista da comunicação política, a repercussão das suas palavras cala perfeitamente dentro do contexto específico de que fiz alusão.

2. Como conhecedor da realidade sócio-política angolana, tem boas probabilidades de ajudar Angola na implementação e consolidação do estado democrático de direito. Entretanto, trata-se de “ajudar” e não de assumir qualquer protagonismo. Os angolanos devem assumir o seu presente e o construir o seu futuro com as suas próprias forças vivas. Guterres, por mais que queira fazer por Angola, não será nunca a solução para os problemas angolanos. As coisas não mudam ou melhoram só porque falou o Secretário-Geral da ONU. Se assim fosse, o destino da Síria seria outro tendo em conta os repetidos pronunciamentos do Ban-Ki Moon. Por outro lado, apesar do seu prestígio e influência indiscutível, o Secretário-Geral não voa sozinho como as águias. É preciso ter em conta, em termos de decisões, o peso do Conselho de Segurança. Dito doutro modo, o destino de Angola não dependerá de Guterres, nem da sua paixão por Angola, mas a sua influência poderá ser determinante nas transformações políticas que se esperam para o país, sobretudo no âmbito da consolidação da democracia.

3. O papel da ONU no acompanhamento das próximas eleições em Angola não há-de ser genericamente diferente das precedentes. A missão de observação, na maior parte dos casos não passa disso: simples observação. Guterres não vai impedir que haja fraude. Também não vai retirar legitimidade ao governo que sair das eleições mesmo que sejam fraudulentas, desde que os órgãos eleitorais nacionais e os tribunais validem os resultados. Temos casos repetidos no Congo, no Gabão, no Burundi, em Moçambique, etc. É tudo uma palhaçada, mas em nome da não ingerência, a ONU fecha os olhos e vai contribuindo para debilidade dos processos eleitorais em países potencialmente autoritários, legitimando assim a perpetuação das ditaduras camufladas em democracias, como no caso de Angola.

José Patrocínio

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1 – À partida sempre imaginei que qualquer um que se candidate ao cargo de Secretário-geral da ONU, faça a sua campanha e procure os seus apoios. Depois, obviamente que esperava que agradeça por esse apoio. Chama-se a isso diplomacia. Realmente podemos chamar hipocrisia ou ainda outros nomes mais pesados. O que importa (ou o que importaria) é perceber que determinadas alianças devam ser estratégicas, ou seja, podemos estar juntos hoje, podemos estar de acordo com um assunto mas não significa que estamos juntos sempre nem concordamos com tudo. Que este entendimento não leve depois, nos desacordos, a fazer e manter falsos acordos, ou pactuar-se. Se assim não fosse, ninguém, honesto que se sinta, poderia candidatar-se ao dito cargo já que nenhum país no mundo foge de ser alvo de críticas ou de observações menos positivas. No entanto, esperar isto não significa concordar com “rasgados elogios” a Angola. Como não significa que, dele, do candidato e agora Secretário-geral, esperasse “rasgadas críticas”.

2 – Nunca imaginei que um Secretário-geral da ONU; Guterres ou qualquer outro, ajude de alguma forma a implementação de um Estado de Direito. Pelo menos desde que tomei consciência do que realmente é a ONU. Isso não significa que não deva tomar posições quando realmente tais transgressões possam colocar em causa direitos a larga escala. Coloquem em causa a segurança regional ou outras situações similares. Nenhum Secretário-Geral teria ou terá tempo nem poder para acompanhar e intervir em todas as questões mundiais, do nível das que sentimos em Angola. Isto será, obviamente, papel de outras estruturas dentro da ONU, como agências ou secções. Na realidade já fomos exemplo disso com posicionamentos de responsáveis na ONU no caso do Mavungo, dos 15+2 ou do Sumi.

3- Pela experiência, mas também pelo contexto, o papel da ONU nas nossas próximas eleições não será muito diferente do que aconteceu nos nossos processos eleitorais anteriores. Haverá, obviamente, algumas observações negativas, mas vai concluir com uma observação aprovatória dos resultados na base de serem “livres e justas”. Se o nosso contexto mudasse e, por exemplo, em vez dos partidos políticos concorressem às eleições de forma independente e houvesse realmente um movimento nacional que envolvendo partidos e sociedade civil, sem bandeiras partidárias e com a promessa e garantia de gerir o mandato como uma assembleia constituinte e trouxesse ao debate assuntos de transição e de pacificação, como discutir Cabinda ou as Lundas, se esse movimento trouxesse realmente rostos desligados de maus exemplos e comportamentos, impondo realmente a transparência, então aí, nesse e apenas nesse contexto, a ONU não poderia ter outra posição que não fosse tentar ser o mais justa possível.

Paulo Morais

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1 – As loas de António Guterres ao governo de Angola, elogiando o papel do país no contexto internacional, não se entendem. O papel do regime angolano no contexto internacional tem sido o de exportação da corrupção, através, nomeadamente, das conexões privilegiadas com os regimes português e brasileiro. Eduardo dos Santos e os seus acólitos surgem ligados a todos os grandes escândalos de corrupção no Brasil e em Angola – do Mensalão ao Lava Jato, no Brasil, do BES às parcerias público-privadas em Portugal. Por outro lado, o ascendente de Dos Santos sobre dirigentes de outros países produtores de petróleo, como Timor, Guiné Equatorial ou S. Tomé e Príncipe, tem constituído uma má influência no mercado mundial de energia. Pelo que o papel do regime angolano no contexto mundial tem sido globalmente muito negativo. Os elogios de António Guterres a Eduardo dos Santos são pois inadmissíveis e perniciosos. Pois a submissão de um Secretário-Geral das Nações Unidas relativamente a um dos regimes mais corruptos do Mundo, desprestigia as próprias Nações Unidas.

2 – Só uma forte pressão internacional a favor dos direitos humanos em Angola, a par de medidas internacionais, impostas do exterior, de combate à corrupção – poderão trazer a Angola um futuro decente. Não creio que o recém-eleito Secretário-Geral das Nações Unidas, por iniciativa própria, pressione Eduardo do Santos e os seus governantes.

3 – As próximas eleições em Angola deveriam, em meu entender, ser fiscalizadas pelas Nações Unidas, através dos mecanismos internacionais comuns de observação eleitoral. Mas, ainda muito mais importante: o próprio processo eleitoral deveria ser entregue a uma Comissão Internacional Independente, constituída por representantes do governo, dos partidos e coligações concorrentes, mas também, e sobretudo, por personalidades estrangeiras, prestigiadas, reconhecidamente críticas do regime angolano, provenientes de vários continentes. O controlo independente de todo o processo deveria começar desde já, nomeadamente através da validação externa do processo de recenseamento eleitoral, da supervisão de toda a logística das eleições e todos os outros procedimentos previstos no calendário eleitoral. O próximo acto eleitoral é talvez a única e última oportunidade para que Angola veja o desenvolvimento nas próximas gerações e o povo angolano possa finalmente libertar-se desta oligarquia corrupta – e possa usufruir da liberdade e da democracia, fruindo de todas as riquezas que por direito lhe pertencem. As eleições não serão fiáveis se forem conduzidas exclusivamente por uma máquina ao serviço dum regime reconhecidamente corrupto; e decrépito.

Eugénio Costa Almeida

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1. Naturalmente que o próximo Secretário-Geral das Nações Unidas deve cumprimentar e agradecer a todos os que ajudaram à sua eleição. E no caso de Angola e do Presidente Engº José Eduardo dos Santos, ainda mais se compreende essa posição elogiosa transmitida pelo Engº António Guterres. Recordemos que, a certo momento, individualidades próximas do Governo de Angola, nomeadamente junto do MIREX, afirmavam que iriam apoiar outros candidatos, tendo sido dito na altura que seriam ou a candidata argentina ou o candidato esloveno; ainda que, em Julho, o senhor Chikoti terá acentuado que Angola, enquanto membro não permanente do Conselho de Segurança, iria apoiar o candidato esloveno Miroslav Lajcak. Ora, provavelmente, e depois das várias reuniões havidas entre as autoridades portuguesas e angolanas e, mesmo, creio entre o senhor Guterres que chegou a ter encontros bilaterais com representantes angolanos, a situação mudou. Mesmo dentro da CPLP havia quem estivesse não muito receptivo ao candidato português, e, parece, terá sido a posição final de Angola no apoio a Guterres que levou os membros da organização a apoiarem definitivamente o senhor Guterres. Daí, talvez, e compreensível, o agradecimento público que o senhor Engº Guterres fez ao senhor Presidente Engº Eduardo dos Santos.

2. A postura de um qualquer Secretário-Geral das Nações Unidas é, deveras, periclitante principalmente se está no início – ou mesmo no todo – primeiro mandato. Primeiro que tudo, e por muito independente (a honestidade nem se põe em causa) que o Secretário-Geral possa ser, estará sempre dependente do que os corredores do palácio de vidro, nomeadamente, os que rodeiam o Conselho de Segurança, e os seus principais actores, transmitam para o exterior. E se os citados actores em causa são membros permanentes (logo, com direito de veto), deste pouco democrático órgão das Nações Unidas que é o Conselho de Segurança – ainda que a Assembleia-Geral possa, quando em maioria, anular algumas decisões (ou todas se fosse essa a vontade dos países-membros) – então o Secretário-Geral terá um campo de manobra muito reduzido limitando-se a ficar por palavras e por actos de visibilidade pública. Ora o senhor Guterres não será diferente. Poderá, quanto muito, e caso mantenha relações privilegiadas com as autoridades angolanas, procurar que as autoridades angolanas sejam mais receptivas a uma maior abertura política e social do país. Mas isto, terá de ser, primeiro de tudo, uma prioridade e uma “obrigação” dos angolanos e não um acto externo. À custa de muitos actos externos é que o Estado de Direito em Angola é, bem ou mal, não discuto nem me adianto, enquanto académico – ainda que como analista político e cidadão angolano possa e o deva fazer –, questionado externa (e internamente) sem que nos proporcionam meios de poder melhorar o que possa – e está, naturalmente ninguém é perfeito, – mal.

3. A ONU só poderá ter um papel – real e efectivo – nas próximas eleições nacionais se para isso for convidada. Como temos reparado em eleições recentes noutros países africano, e mesmo não-africanos, na maioria dos casos os observadores – quando convidados – são da União Africana, de organizações próximas dos detentores do Poder, ou de organizações não-governamentais por vezes convidadas não pelo Governo nacional, mas por partidos oposicionistas que consideram temer pela transparência das eleições. Ou seja, raramente, ou nunca, a ONU é convidada para monitorizar essas eleições. No caso de Angola, a situação deverá ser similar. Não que o actual Poder tema perder o controlo eleitoral do País, pelas razões várias e que o Folha 8 muitas vezes vem patenteando, mas porque, salvo alguma situação anómala que leve o Conselho de Segurança – e sem, sublinho, o veto de algum dos membros-permanentes, nomeadamente da China ou Rússia – temer pela transparência do acto “force”, “exija” a sua presença como observador independente. Isto poderia configurar como uma estranha interferência externa nas acções internas do País, o que poderia ter repercussões pouco positivas dentro do Continente. Ora, sendo o senhor Guterres uma pessoa que parece estar de excelentes relações com as autoridades nacionais, em particular com o senhor Presidente Engº dos Santos, não vejo que essa situação – ainda que possível, e isto vem ao encontro do que disse no início desta questão – possa ser configurada. Quanto muito, e aí o papel do Secretário-Geral pode ser importante, tentando ser, face ao seu prestígio e reconhecimento pessoal, uma ponte entre os órgãos das Nações Unidas e o Governo e a CNE angolanos.

Emmanuel Nzita

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1 – Em primeiro lugar gostaria de realçar aqui que essa questão de elogiar o regime de Luanda não é uma novidade quando sabemos a promiscuidade de relações que existem entre a maioria das autoridades políticas português e o regime de Luanda. Não é surpreendente para nós ver António Guterres agradecer e elogiar pessoalmente o presidente José Eduardo dos Santos para garantir o seu apoio nesta eleição, com palavras de grande eloquência, com uma enorme respeitabilidade, como se Eduardo dos Santos fosse uma referência em matéria de democracia e direitos humanos no mundo, para não dizer na sub-região da África Austral. José Eduardo dos Santos adora este tipo de elogios no plano mediático para tentar lavar a imagem desastrosa de um regime que não tem nada a invejar a outras ditaduras do mundo. E os políticos portugueses conhecem muito bem o jogo e nunca deixam passar uma oportunidade de o fazer em troca de algumas migalhas. E o que na verdade é chocante em tudo isto é que uma grande categoria de políticos portugueses já perderam o conceito de vergonha e ética quando se trata de Angola.

2 – Quanto à sua eleição para este cargo muito importante e que é ao mesmo tempo uma carga figurativa e decorativa apesar da exposição mediática e prestígio internacional, já sabemos quem manda nas Nações Unidas pelo modo de funcionamento desta máquina pesada. E é também muito importante fazer algumas perguntas sobre a personalidade do novo Secretário-Geral e das suas capacidades de liderança sem o julgar antes de começar o seu trabalho. Acabei de me lembrar das palavras que Mário Soares disse um dia ao ex-jornalista do Expresso, António Saraiva, que o problema de Guterres «é a falta de tomates, ou seja falta de capacidades firmes para tomar decisões difíceis…». Ele não vai de forma alguma forma prestar assistência às Nações Unidas para implementação de um Estado de Direito em Angola, se analisarmos todas as declarações das autoridades portuguesas sobre as violações dos direitos humanos em Angola. Ninguém os-viu condenar abertamente o caso dos 15+ 2, sobre o caso de José Marcos Mavungo e Arão Tempo e recentemente sobre o caso desta criança Rufino morto a tiro por soldados das FAA, para não falar de Cabinda. António Guterres e grande parte da classe política portuguesa sabe, por exemplo, que quando Bento Bembe diz que Angola é um Estado de direito e um exemplo de democracia no mundo, está a mentir. Isso mesmo lhes chama a Human Rights Watch e a Amnistia Internacional. Não admira, por isso, que os políticos portugueses considerem que falar de direitos humanos e do Estado de Direito em Angola é uma interferência nos assuntos internos e que Eduardo é um arquitecto da paz.

3 – Sobre as eleições que se aproximam e o modo pelo qual o processo de preparação esta sendo conduzido, posso dizer sem margem para erros que o governo já tem uma vantagem sobre o mecanismo da fraude que está a ser instalado, sem tomar em consideração as contribuições da oposição. Se as Nações Unidas e outras organizações internacionais de apoio às eleições, que podem prestar o seu apoio durante esta fase de preparação estão ausentes, o que é que eles virão fazer no momento de votos? Observar a fraude? Tolerar a fraude e convidar a oposição a preservar a paz? É agora que a ONU deveria acompanhar a classe política angolana na preparação destas eleições, dando o direito de voto à diáspora e elucidar a população sobre os riscos de fraude para ter direito a uma eleição transparente. Infelizmente, a ONU está longe dessas considerações do povo angolano. A oposição goza de nenhuma cobertura da mídia estatal nas suas actividades políticas, não há verdadeiros debates excitantes e animadas entre os partidos políticos, a última vez que eu acompanhei um debate na televisão, pensei que o Sr. Abel Chivukuvuku estava à frente de investigadores para um interrogatório, à frente de jornalistas formados em métodos estalinistas, um cenário incrível. A ONU não vai jogar nenhum papel relevante nessas eleições angolanas, a mudança ou a alternância será possível apenas pela capacidade da oposição de controlar o processo e conter a fraude e se o povo fizer a escolha certa. Quanto ao Guterres, só podemos sugerir-lhe a sabedoria de separar a sua função da sua amizade pessoal com o presidente Eduardo dos Santos, porque a realidade acaba sempre de esmagar os compromissos negativos.

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